A Fibrose Cística (FC) é uma das doenças raras cujo manejo tem sido grandemente beneficiado pela evolução da biologia molecular. Isso porque a condição está relacionada ao gene CFTR, amplamente expresso em células de sistemas do corpo e alvo de milhares de variantes causadoras da doença. Como consequência, a FC apresenta um vasto conjunto de manifestações fenotípicas, exigindo cuidados multidisciplinares constantes em seu manejo.
Com o estudo aprofundado do genoma, porém, tornou-se possível, nos últimos anos, a identificação das alterações bases da doença, bem como o desenvolvimento de terapias direcionadas que atuam diretamente na causa – um avanço revolucionário em relação ao tratamento exclusivamente sintomático adotado até então.
Neste artigo, você conhecerá mais a fundo a etiologia da Fibrose Cística, suas manifestações clínicas mais recorrentes, as mutações relacionadas no gene CFTR e o caminho promissor dos medicamentos reguladores atrelados à análise molecular desta condição.
Fibrose Cística: causa e manifestações clínicas
A Fibrose Cística é uma doença crônica e sistêmica, sem cura, caracterizada pela produção de muco 30 a 60 vezes mais espesso que o normal. Tal alteração compromete principalmente o pulmão e as vias respiratórias, mas também pode afetar o pâncreas, fígado, rins, vesícula biliar, órgãos reprodutores e intestino.
De caráter hereditário, trata-se da doença genética grave mais comum na infância no Brasil- 74% dos pacientes diagnosticados têm menos de 18 anos. Seu padrão de herança é autossômico recessivo, o que significa que é necessário obter dois alelos alterados, um do pai e outro da mãe, para manifestar a doença.
A Fibrose Cística é causada por variantes no gene CFTR – sigla em inglês para “cystic fibrosis transmembrane conductance regulator”, que se refere ao regulador da condutância transmembrana na fibrose cística, localizado no braço longo do cromossomo 7. Essas variantes podem ser de deleções, inserções, substituições de nucleotídeos ou rearranjos complexos, dentre outras e podem causar disfunções ou mesmo ausência da proteína codificada pelo gene em questão, cuja principal função é manter a hidratação de secreções dentro das vias aéreas e dutos através do transporte de cloreto e inibição da absorção de sódio.
As manifestações clínicas da FC são bastante variadas dada a variedade de mecanismos que levam à ruptura da função da proteína CFTR e sua ampla expressão no organismo, além da interferência de fatores ambientais e de outros genes.
No entanto, o estudo moderno da doença aponta que parte dos sintomas está relacionado ao tipo de alteração genética¹, de modo que a correta identificação desse fator é de grande importância para o prognóstico e direcionamento terapêutico.
O acúmulo de muco nos pulmões e vias respiratórias é uma das expressões clássicas da FC e pode causar:¹
- Tosse crônica, muitas vezes com catarro;
- Pneumonias de repetição;
- Infecções pulmonares frequentes, como bronquite;
- Catarro com aspecto de “chiclete”, bem mais espesso que o normal;
- Chiados no peito, falta de fôlego ou dificuldade para respirar;
- Surgimento de pólipos nasais.
O muco também pode bloquear o trato digestório e o pâncreas, impedindo que enzimas digestivas cheguem ao intestino e prejudicando a absorção de gorduras e nutrientes essenciais para o desenvolvimento saudável. Nesse caso, podem-se notar sinais e sintomas como:¹
- Diarreias (geralmente volumosas, com odor fétido);
- Baixo potencial de crescimento ou pouco ganho de peso, apesar de bom apetite;
- Vômitos e “inchaço” abdominal.
Outros sintomas comuns da Fibrose Cística incluem pele/suor de gosto muito salgado e baqueteamento digital (alongamento e arredondamento na ponta dos dedos)¹. Já a manifestação não clássica da doença inclui infertilidade, pancreatite idiopática, bronquiectasia e rinossinusite crônica.
A FC é uma doença progressiva, de maneira que o quadro clínico tende a se agravar, caso o tratamento não seja iniciado. Por essa razão, o diagnóstico precoce é fundamental para conter o seu avanço e prevenir sequelas.
Variantes e diagnóstico genético
Existem mais de 1.500 variantes no gene CFTR conhecidas até o momento. A mais comum delas é a F508, com uma frequência de 66% no mundo⁵. No Brasil, devido à alta miscigenação, entre 20 e 30% dos pacientes apresentam essa variante em pelo menos um dos alelos.
Conforme vão sendo descobertas, as variantes são classificadas de acordo com seu defeito primário. Há seis classes de divisão, sendo que as três primeiras apresentam maior gravidade:⁶
- I: variantes que causam total ausência da síntese da proteína CFTR, ou sua produção em menor comprimento;
- II: variantes em que a proteína apresenta defeito no enovelamento, sendo degradada pela célula;
- III: variantes em que a proteína é sintetizada e chega à superfície da célula, mas uma alteração impede a passagem de íons cloreto e bicarbonato por esse canal;
- IV: variantes que provocam baixa condutância na passagem de íons pelo canal CFTR;
- V: variantes que levam a uma redução no número de canais CFTR que chegam à superfície das células;
- VI: variantes que causam redução na estabilidade da proteína CFTR, fazendo com que seja removida da superfície das células.
Outra descoberta recente no campo da genética foi em relação aos genes modificadores, cuja atuação interfere nos sintomas e gravidade da doença. Seu estudo é relevante não apenas para explicar a diversidade de manifestações clínicas provenientes de uma mesma variante, mas também para o aprimoramento de terapias-alvo. No Brasil, têm sido estudados os seguintes genes modificadores: ACE, ADRB2, COX-2, ADRA2A, GSTM1, GSTT1, GSTP1, GCLC, TGF-β1 e CD14, entre outros.
Em vista da pertinência das características moleculares na expressão da Fibrose Cística, a testagem genética tornou-se uma ferramenta absolutamente indispensável no manejo da doença. Embora o exame possa ser realizado em qualquer idade, idealmente a FC deve ser investigada na infância, com o rastreio realizado pela Triagem Neonatal, logo após o nascimento.
Uma das análises bioquímicas realizadas no Teste do Pezinho básico, chamada de dosagem de tripsina imunorreativa (IRT), pode indicar a presença de secreções espessas nos ductos pancreáticos, sugerindo o quadro de FC. Porém, a confirmação diagnóstica se dá com o subsequente exame molecular, que apontará a variante de base⁷.
Dentre as tecnologias que tornaram possível essa investigação sofisticada a nível molecular, destaca-se o Sequenciamento de Nova Geração (NGS). Criado há cerca de 20 anos, o NGS é uma revolução em termos de testagem genética, que possibilitou um aumento exponencial na capacidade de sequenciamento do genoma humano a um custo expressivamente menor do que a tecnologia anterior.
A técnica permite a análise simultânea de genes únicos, painéis de genes e até mesmo do exoma completo⁸, com elevada sensibilidade e menor taxa de falsos positivos e negativos. Por meio do NGS, podem-se analisar deleções e duplicações pequenas, bem como realizar a detecção de variantes de nucleotídeos únicos e rearranjos complexos⁸.
Tratamentos e novas perspectivas
Antes dos avanços na pesquisa genética, o tratamento da Fibrose Cística era baseado unicamente no manejo dos sinais e sintomas, como a fisioterapia respiratória, a administração de broncodilatadores, a suplementação de enzimas pancreáticas e mudanças dietéticas.⁴
No entanto, essas abordagens apresentam consideráveis limitações, especialmente pela necessidade de intervenções contínuas e de adesão rigorosa por parte do paciente, além de possíveis efeitos colaterais debilitantes e da resposta insuficiente em certos casos.⁴
Nesse sentido, o advento das terapias moduladoras do CFTR, a partir de 2012, possibilitou uma mudança de paradigma no tratamento da FC. Pela primeira vez, foi possível oferecer uma terapia medicamentosa com ação direta na causa desta condição, atuando sobre a variante específica e, assim, mudando o curso da doença em estágio inicial.³
Os medicamentos moduladores são terapias direcionadas para pessoas com variantes genéticas específicas que respondem aos tratamentos disponíveis¹². Eles atuam corrigindo os defeitos da proteína produzida pelo gene alterado⁶.
Há dois tipos de medicamentos moduladores: os potenciadores e os corretivos.
Os potenciadores atuam aumentando a probabilidade de abertura do canal CFTR na superfície celular, sendo especialmente eficaz nos casos em que a proteína é capaz de realizar alguma atividade, mas de forma limitada.
Já os corretivos visam corrigir a dobra defeituosa da proteína CFTR, ação vantajosa para casos em que há sintetização, mas a proteína não é corretamente processada ou transportada para a membrana celular.⁴
Dessa forma, algumas variantes que já possuem terapia direcionada são F508, G178R, S549N, S549R, G551D, G551S, G1244E, S1251N, S1255P, G1349D, P67L, D110H, R117C, L206W, R352Q, A455E, D579G, 711+3A→G, S945L, S977F, R1070W, D1152H, 2789+5G→A, 3272-26A→G e 3849+10kbC→T.⁶
Segundo os resultados mais recentes de ensaios clínicos, a combinação entre os dois tipos de moduladores tem demonstrado um potencial promissor para a melhora da função pulmonar, redução nos eventos agudos respiratórios e aumento na qualidade geral da saúde, representando um método eficaz de tratamento à causa subjacente da FC.⁴
Como tantas outras doenças raras, a Fibrose Cística é uma condição desafiadora, mas que pode ter seu destino alterado graças ao avanço da ciência. O cuidado começa com o diagnóstico precoce e pode transformar vidas, modificando a história natural da doença.
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Referências:
- BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE MS. Fibrose cística. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/fibrose-cistica/.
- CASAHUNTER. Doenças raras: fibrose cística. Disponível em: https://www.casahunter.org.br/doencas-raras/fibrose-cistica.php.
- O GLOBO. ‘Supermedicamento’ contra fibrose cística chega ao SUS. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2024/06/06/fibrose-cistica-supermedicamento-de-r-92-mil-chegou-ao-sus.ghtml.
- RSD JOURNAL. Perspectivas futuras em terapias moduladoras para Fibrose Cística: Avanços e desafios. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/download/45653/36368/475343.
- PMC – PubMed Central. Analysis of CFTR Gene Mutations in Children with Cystic Fibrosis, First Report from North-East of Iran. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3786104/.
- UNIDOS PELA VIDA. O que são as mutações do gene CFTR e quais suas diferenças na fibrose cística. Disponível em: https://unidospelavida.org.br/o-que-sao-as-mutacoes-do-gene-cftr-e-quais-suas-diferencas-na-fibrose-cistica/.
- CASAHUNTER. Doenças raras: fibrose cística. Disponível em: https://www.casahunter.org.br/doencas-raras/fibrose-cistica.php.
- PMC – PubMed Central. CFTR variant testing: a technical standard of the American College of Medical Genetics and Genomics (ACMG). Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8268680/.
- GOVERNO DO BRASIL. Fibrose cística pode ser identificada nos primeiros dias de vida do bebê. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021/setembro/fibrose-cistica-pode-ser-identificada-nos-primeiros-dias-de-vida-do-bebe.
- DLE. Triagem neonatal relacionados: fibrose cística – painel de mutações. Disponível em: https://www.dle.com.br/triagem-neonatal-relacionados/fibrose-cistica-painel-de-mutacoes/.
- UNIDOS PELA VIDA. Genes modificadores na fibrose cística. Disponível em: https://unidospelavida.org.br/genes-modificadores-na-fibrose-cistica/.
NCBI Bookshelf. Cystic Fibrosis. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1250/.