Niemann Pick: causas, diagnóstico e tratamento da doença rara

Diante do desafio que as doenças raras representam para a comunidade médica e a população que convive com elas, a conscientização é nossa maior aliada na busca por mais diagnósticos precisos e tratamentos precoces. 

Na Doença de Niemann Pick, um erro inato do metabolismo incluído na família de Doenças de Depósito Lisossômico (DDL), a limitação de tratamentos direcionados torna a detecção precoce particularmente relevante. Isso porque o manejo do quadro se baseia em conter a progressão de sintomas e sequelas, além de viabilizar a melhora de algumas manifestações clínicas.

Neste artigo, você se informará sobre a etiologia e fisiopatologia da doença, suas principais manifestações clínicas e sinais suspeitos e os caminhos diagnósticos e terapêuticos disponíveis hoje para o quadro.

O que é a Doença de Niemann Pick

As Doenças de Depósito Lisossômico (DDL) se caracterizam por deficiências enzimáticas em consequência de alterações genéticas em uma ou mais enzimas encontradas nos lisossomos, envolvidas na quebra de açúcares, lipídios e seus subprodutos. No caso da Deficiência de esfingomielinase ácida (ASMD), outrora chamada de Niemann-Pick tipos A e B, a hidrólise da esfingomielina (SM) pela enzima esfingomielinase ácida fica prejudicada, o que compromete a conversão da esfingomielina em ceramida e fosfocolina.

Devido a essa disfunção, a SM e seus lipídios precursores se acumulam nos lisossomos, principalmente em macrófagos, causando danos celulares e o aumento das células afetadas, que chegam a atingir diâmetros de 90 micrômetros. Os depósitos podem ocorrer em vários órgãos, mas concentram-se principalmente no fígado, baço, pulmões e cérebro.¹ 

No caso da Doença de Niemann-Pick tipo C, ocorre prejuízo no transporte de colesterol e outros lipídios de dentro para fora das células por alterações nos genes responsáveis que levam à disfunção das proteínas responsáveis por esse transporte, ocorrendo então, o acúmulo dentro das células.

Os sinais e sintomas decorrentes dessas falhas são variados e dependem, em parte, do subtipo e gravidade da doença. Porém, de maneira geral, envolvem citopenias, alterações hepáticas e esplênicas e doenças pulmonares, além de sintomas neurológicos ⎼ sendo os mais comuns atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, paralisia vertical do olhar supranuclear, ataxia, disartria, disfagia e distonia¹.

De padrão autossômico recessivo, a Doença de Niemann Pick requer duas cópias do gene mutado para se manifestar.

Tipos da Doença de Niemann Pick

A doença é classificada em três subtipos: A, B e C. Eles diferem tanto em relação à origem da disfunção, quanto à idade de apresentação, manifestações clínicas mais comuns e prognósticos.

Os tipos A e B são causados por mutações missense (ou mutação de sentido trocado) no gene da esfingomielina fosfodiesterase-1 (SMPD1), responsável por codificar a enzima esfingomielinase ácida (ASM). Existem mais de 180 mutações conhecidas nesse gene que levam a uma forte redução na atividade enzimática. Estima-se que os subtipos A e B afetem 1 em 250.000 indivíduos no mundo.¹

O tipo A é conhecido como forma neurovisceral infantil e apresenta-se comumente antes dos três meses de idade. É caracterizado por atividade de esfingomielinase ácida muito baixa, manifestando hepatoesplenomegalia e atraso de crescimento, além de sintomas neurológicos a partir de 1 ano, com atraso psicomotor e regressão de marcos do desenvolvimento. Nesse subtipo, todos os pacientes têm um achado clássico chamado mancha vermelho-cereja. Geralmente, a doença é fatal antes dos 3 anos.¹

Já o tipo B é menos grave que o A e costuma apresentar-se no meio da infância. É caracterizado por sintomas viscerais variáveis e comprometimento neurológico mínimo, com quadros de hepatoesplenomegalia, doença pulmonar intersticial e infecções pulmonares recorrentes, trombocitopenia e crescimento ósseo lento, sendo a mancha vermelho-cereja presente em ⅓ das pessoas. Geralmente, o indivíduo vive até o fim da infância ou início da vida adulta.¹

Por fim, o tipo C é causado por mutações nos genes NPC1 (que são predominantes, representando 95% dos casos) e NPC2. Variações nesses genes levam à formação anormal das proteínas correspondentes a eles, que estão presentes em endossomos tardios e lisossomos e são envolvidas no transporte intracelular de colesterol e esteróis. Como resultado, o movimento dos lipídios para fora das células é bloqueado, gerando acúmulo nos lisossomos e danos celulares e de órgãos.¹ A incidência estimada do tipo C da DNP é de 1 em 100.000 a 120.000 indivíduos.

Geralmente, esse subtipo apresenta-se em crianças, mas pode surgir em qualquer idade. A manifestação clínica é heterogênea e inclui envolvimento sistêmico, neurológico e psiquiátrico, com quadros de ataxia, distonia, paralisia do olhar supranuclear, disfonia, disfagia e doença hepática e pulmonar grave. A DNP tipo C de início precoce costuma manifestar-se ainda com icterícia nos primeiros dias de vida, hepatoesplenomegalia ou esplenomegalia isolada, sendo que esses sintomas geralmente precedem o comprometimento neurológico.¹ 

O prognóstico depende da idade de início: manifestações na infância têm poucas chances de sobrevivência além dos 5 anos e, em casos iniciados após essa idade, a pessoa pode viver até os 20 anos. Porém, o prognóstico depende da gravidade de cada caso.¹ 

De maneira geral, considerando todos os subtipos da doença, as apresentações clínicas mais frequentes incluem:²

  • Fígado e baço aumentados;
  • Infecções repetidas que causam pneumonia;
  • Atraso do desenvolvimento neuropsicomotor;
  • Sangramentos;
  • Problemas para engolir e comer;
  • Perda de controle muscular: o indivíduo pode parecer desajeitado ou estabanado (ataxia) e apresentar problemas de caminhada e/ou movimentos rígidos;
  • Discurso arrastado; 
  • Problemas de visão, como perda de visão e movimentos oculares involuntários;
  • Problemas para dormir;
  • Sensibilidade ao toque;
  • Problemas com a aprendizagem e deterioração progressiva da memória;
  • Condições de saúde mental, como depressão, paranoia e problemas de comportamento;
  • Perda auditiva.

Como se trata de uma doença progressiva, é comum que se desenvolvam complicações ao longo do tempo ⎼ razão pela qual o diagnóstico precoce é tão importante, visando a melhora da saúde e sobrevida dos pacientes. Assim, é possível que a Doença de Niemann Pick evolua para insuficiência hepática fulminante, insuficiência respiratória, demência, convulsões, psicose semelhante à esquizofrenia, hemorragia interna ou externa, doença cardíaca coronária e valvar, ossos corticais afinados e coxa vara.¹

Diagnóstico para a Doença de Niemann Pick

Por se tratar de uma doença rara, a busca pelo diagnóstico passa pela exclusão de doenças mais comuns, sendo que a heterogeneidade dos sinais e sintomas pode prolongar esse processo. Nos casos em que a doença já está manifesta, a investigação geralmente começa a partir da análise clínica e laboratorial, até que se chegue à hipótese de Doença de Niemann Pick. 

Uma vez estabelecida a suspeita, o diagnóstico é feito por meio da combinação de análise bioquímica (dosagem enzimática e biomarcador Lyso-SM) e teste genético. Para os tipos A ou B, realiza-se medição da atividade da ASM em papel filtro (sangue seco) ou leucócitos, a partir de amostra de sangue. Em caso de baixa atividade, o teste genético confirma o diagnóstico e fornece informações sobre as mutações envolvidas.¹ 

Já o diagnóstico precoce pode ser suspeitado por meio de exames iniciais, o que oferece grande vantagem para a melhor estabilização da doença. No pré-natal, o ultrassom pode mostrar o aumento da translucência nucal, fígado e baço aumentados, levantando a suspeita. 

No período neonatal, a investigação pode ser feita por meio do Teste do Pezinho,  em sua versão mais completa. O DLE oferece o Teste do Pezinho Nova Era, que inclui a análise dos genes NPC1 e NPC2 no estudo da Doença de Niemann Pick tipo C. Além disso, a dosagem de enzima esfingomielinase ácida pode ser incluída na bateria de testes que compõem o teste do pezinho, permitindo que casos confirmados possam receber intervenção terapêutica antes mesmo do surgimento dos sintomas.

Por se tratar de uma doença progressiva e ainda sem cura ⎼ embora ensaios de drogas atuais sejam promissores ⎼, o diagnóstico precoce é a principal ferramenta para conter o avanço das manifestações e estabilizar os sintomas.

Tratamento e acompanhamento para a Doença de Niemann Pick

Os cuidados de suporte são o pilar de tratamento da Doença de Niemann Pick, embora alguns medicamentos direcionados já estejam em uso em algumas partes do mundo. Atualmente, os estudos de terapias genéticas e de reposição enzimática são as principais apostas na busca por uma eventual cura para a doença.

O tipo C da doença conta com uma terapia específica ⎼ um inibidor oral da glicosilceramida sintetase que reduz a concentração do glicocerebrosídeo⁵ ⎼, voltada para estabilizar a taxa de progressão da manifestação neurológica. O medicamento é aprovado na Europa e outros países¹, incluindo o Brasil.

Já o tipo B conta com terapia de reposição enzimática para níveis ausentes ou baixos de esfingomielinase, que contribui no combate a problemas pulmonares e na diminuição do tamanho do fígado e baço, podendo ainda ajudar no crescimento de crianças.⁵

A base do tratamento, no entanto, ainda concentra-se no manejo de sintomas e na abordagem terapêutica multidisciplinar, que visa o monitoramento dos diversos órgãos e sistemas possivelmente afetados pela doença, e no apoio integral ao paciente.

As principais medidas se baseiam no controle dos níveis de lipídios no sangue e no monitoramento da função hepática. Transfusão de produtos sanguíneos pode ser necessária em episódios de hemorragias, assim como o aporte de oxigênio para pacientes com doença pulmonar intersticial. O manejo da dor é necessário em muitos casos, do mesmo modo que a fisioterapia, quando ocorrem manifestações neurológicas.¹

É importante que o paciente seja educado quanto ao cuidado de seu quadro e à importância de manter o acompanhamento. Assim, o envolvimento da assistente social pode ser benéfico nesse sentido. A equipe ainda pode contar com médico geneticista, hepatologista e gastroenterologista, endocrinologista, neurologista e enfermeiro, sem se esquecer do papel do pediatra e do clínico geral a orquestrar a equipe de saúde.

A conscientização sobre a importância de considerar doenças raras no diagnóstico diferencial de quadros com sintomas inespecíficos é fundamental para melhorar o cuidado com os pacientes e impactar positivamente a vida de milhares de pessoas que sofrem com condições não diagnosticadas. 

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Referências

  1. Niemann-Pick Disease. National Library of Medicine. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK556129/.
  2. Niemann-Pick disease. Mayo Clinic. Disponível em: https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/niemann-pick/symptoms-causes/syc-20355887.
  3. Experience of the NPC Brazil Network with a Comprehensive Program for the Screening and Diagnosis of Niemann-Pick Disease Type C. PubMed Central (PMC). Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9326630/.
  4. In Utero Diagnosis of Niemann–Pick Type C in the Absence of Family History. PubMed Central (PMC). Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5059189/.
  5. Recent Advances in the Diagnosis and Treatment of Niemann-Pick Disease Type C in Children: A Guide to Early Diagnosis for the General Pediatrician. PubMed Central (PMC). Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4345273/.
  6. Miglustate – Nota Técnica. Ministério da Saúde – Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/conjur/demandas-judiciais/notas-tecnicas/notas-tecnicas-medicamentos/notas-tecnicas/m/miglustate.pdf.